Há famílias que parecem dançar com o destino, tropeçando sempre no mesmo ponto da música. Mortes precoces, tragédias que se repetem, amores impossíveis, vícios que se herdam como sobrenome. Chamamos de “maldição”, mas no olhar sistêmico de Bert Hellinger, não há feitiço — há lealdade.
Na Constelação Familiar, aquilo que não é visto, reconhecido ou incluído busca expressão através dos descendentes. O que é silenciado se converte em destino. Um segredo não falado vira sintoma, um exilado do clã reaparece no corpo ou na história de alguém que nem o conheceu. É como se o campo familiar exigisse justiça poética: nada pode ser esquecido sem que alguém o pague com a própria vida.
A psicanálise encontra aí o mesmo fio. Para Freud, o inconsciente é um retorno — aquilo que foi recalcado volta, disfarçado, insistente. Jung chamaria de sombra: a parte negada do ser que, rejeitada, ganha poder. Lacan, mais implacável, diria que a repetição é o gozo do inconsciente — uma forma de permanecer preso ao que fere, porque ali ainda pulsa o desejo não simbolizado.
Essas três lentes, unidas, revelam que as “maldições familiares” são narrativas de amor distorcido: amores que não souberam seu lugar.
A família Kennedy: o preço do poder e da exclusão
Nos Kennedy, o brilho político veio acompanhado de uma sequência de mortes violentas, acidentes e escândalos. No campo sistêmico, poderíamos ver o que Hellinger chamaria de desequilíbrio entre dar e receber. A família construiu um império sobre uma base de perdas não choradas e exclusões — como a de Rosemary Kennedy, lobotomizada e ocultada por ter “envergonhado” o nome do clã.
Quando uma filha é silenciada, o feminino é ferido no sistema, e o destino cobra: as mulheres seguintes adoecem, os homens se tornam mártires de causas grandiosas, sacrificando-se por algo que já não lhes pertence.
Elvis Presley: o filho que substituiu o morto
Elvis nasceu depois da morte do irmão gêmeo, Jesse Garon. Em Constelação, isso é um campo delicado: o sobrevivente muitas vezes vive por dois, sem se permitir o prazer pleno de existir. A fama de Elvis, sua voz e seu corpo em êxtase no palco, eram talvez o grito do ausente. E sua decadência — o corpo inchado, o coração exausto — pode ser lida como a culpa inconsciente de quem ocupou o lugar do outro.
Jung veria ali o arquétipo do “irmão sombrio”, o duplo que habita a psique e exige reparação.
Marlon Brando: o amor ferido que se tornou fúria
Na família Brando, a tragédia foi encarnada no próprio mito. O pai violento, a mãe alcoólatra, o filho preso, a filha morta. O homem mais belo e rebelde do cinema arrastava a dor do menino que não foi visto. Lacan explicaria que o olhar do Outro — a mãe, o pai, o público — é o que funda o sujeito. Brando recebeu olhares demais e amor de menos. Tentou libertar-se do Nome-do-Pai, mas acabou órfão de si mesmo.
No olhar sistêmico, ele pertence a uma linhagem em que a fúria e o talento se entrelaçam. O palco era o lugar onde o inconsciente gritava: “Vejam-me, mas vejam também o que vocês tentaram esconder.”
A maldição como pedido de reconciliação
O que chamamos de “maldição” é, na verdade, um pedido de reconciliação.
Cada tragédia familiar é uma carta não lida, um gesto de amor que não soube seu endereço. Hellinger dizia: “O amor infantil busca reparar, o amor maduro reconhece e se inclina.”
O processo terapêutico — seja numa constelação, num divã ou num sonho — é esse gesto: o de olhar para trás com reverência, reconhecer os excluídos e libertar os descendentes.
Quando um filho consegue dizer: “Eu vejo o que vocês viveram. Honro tudo. Agora sigo meu caminho.” — a maldição se dissolve como névoa ao sol.
Porque, no fim, não há famílias amaldiçoadas.
Há apenas histórias pedindo para serem amadas até o fim.
Questões para refletir
1. O que na minha história familiar parece se repetir, mesmo quando eu tento fazer tudo diferente?
Observe sem julgamento. Às vezes, o que chamamos de “azar” é apenas o eco de um amor antigo pedindo para ser reconhecido.
2. Quem na minha família foi esquecido, calado ou excluído — e que talvez ainda viva, inconscientemente, através de mim?
Dê nome, rosto e lugar a esse antepassado. Incluir é a forma mais silenciosa e poderosa de libertar.
3. Qual dor familiar eu ainda carrego tentando “consertar” o passado?
A cura começa quando deixamos de reparar e passamos a honrar. Cada um carrega apenas o que lhe cabe — o resto pertence ao amor que veio antes.
Coquetel de inspiração
DOSE DE SABEDORIA
“A expiação é uma forma de compensação, e por sinal, uma compensação cega. Existe uma lei natural que busca sempre compensar um desequilíbrio. Essa lei atua igualmente na psique, onde também busca sempre compensação. Assim, a expiação é uma tentativa de compensar alguma coisa instintivamente.
Muitas vezes ela funciona de um modo que escapa do controle do indivíduo.
Há, porém, uma forma de libertar-se do contexto instintivo e de compensar de acordo com uma ordem superior, que chamo de ordem do amor. Ela se encontra em um nível superior e leva a compensar de uma forma que dispensa a expiação.”
Bert Hellinger
(16/12/1925 – 19/09/2019)
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